in memoriam de Margarida

Escrevendo Infinitos porque não há caminhos. Eles se fazem ao caminhar

in memoriam de Margarida

in memoriam de Margarida

trecho do livro “Obituário da Esperança” de Guilherme Fraenkel

Na infância me habituei a passar diariamente por aquela janela de madeira na rua da Vida. Ela sempre estava aberta e aquela senhora de cabelos negros e curtos com olhar penetrante e sorriso aberto fazia questão de desejar um bom dia a todos os que passavam.

Era uma casa secular, talvez da época do império, quando o pé direito era muito alto e os telhados com eira e beira denunciavam o poder aquisitivo da família dona do imóvel. As janelas estreitas e altas, tão comuns em várias casas daquela rua, talvez denunciassem um estilo arquitetônico característico. Mas, para a pressa infantil que singrava pelos paralelepípedos irregulares da Vida, toda aquela riqueza da rua não passava de detalhe de fundo.

O parapeito baixo da enorme janela permitia que aquela mulher cadeirante na casa dos quarenta anos observasse o movimento da agitada rua por onde não passavam carros. Caminho obrigatório para quase todos os pedestres da parte alta da cidade que tinham a vida a resolver no burburinho da parte baixa, a rua permitia que muitas pessoas escrevessem uma história singular de passagem.

A minha era de pressa. Desatento aos detalhes, eu era o rabisco colorido que não se demorava muito em terreno sem brinquedos, livros ou praças. O pão quente da padaria do Seu Manoel era o único elemento capaz de reduzir o passo infante apressado.

Eu costumava me deter alguns segundos observando aquela bela mulher que aparentava a idade de minha mãe. Com o saco de papel nos braços que protegia os pães quentes para o café da manhã trazendo o cheiro da fome, eu quase sempre parava para trocar algumas palavras com Dona Margarida, uma pessoa alegre e que dava um bom dia cativante.

De vez em quando ela subvertia a lógica da seresta e, do alto de sua janela gigante, recitava uma poesia curtinha ou cantava um pedacinho de alguma música popular para quem estivesse passando. Nesses eventos eu sempre parava para apreciar e depois seguia rua acima com sorriso no rosto e pressa nos pés para contar o ocorrido enquanto comia pão quente com manteiga e café com leite servido no copo de geleia.

Minhas manhãs sempre começavam alegres quando o rouxinol da casa da rua Vida cantava enquanto eu passava. Era como encontrar um beija-flor no jardim de minha pequena casa sem eira e nem beira. Alegria sem fim que trazia encantamento para todo o dia.

É difícil pensar que aquela janela está fechada permanentemente. A força do tempo criou outros caminhos para facilitar o trânsito de pessoas entre as partes alta e baixa da cidade e a rua de paralelepípedos que não permite a passagem de carros agora está quase sempre vazia de gente. A chuva e o vento descascaram a pintura verde bandeira da janela e o reboco da parede está cheio de rachaduras.

O passar do tempo tem realmente esta força de transformar as coisas. Cabelos negros ficaram brancos, rugas apareceram por todo o corpo e a voz de rouxinol que recitava e cantava se calou aos poucos se reduzindo a um par de olhos penetrantes e um sorriso sereno e generoso.

Nunca abandonei aquela via sem calçada e de chão irregular. Eu me acostumei a ver dona Margarida e costuramos uma história de passagem juntos. Na juventude comecei recitar Drummond e Manoel de Barros para manter os encontros matinais na rua da Vida e sempre lamentava por não ser capaz de cantar.

Aos domingos, quando a pressa era menor, costumávamos fazer nosso sarau da Vida enquanto a manhã passava e o pão perdia seu calor. Crianças achavam engraçado aquele ritual dominical e aprenderam a cultuar a estreita e alta janela de madeira com pintura verde descascada.

Aplausos e sorrisos não eram raros e algumas pessoas chegavam a mudar seus trajetos para circular pela antiga e esquecida rua da Vida aos domingos.

Mas o tempo sempre se responsabiliza por transformar as coisas e não poderia ser diferente naquela rua estreita. Dona Margarida precisou partir. Mas segue nos parapeitos das janelas que construí em meu coração. Talvez algum dia nós nos reencontremos.

Agora penso apenas em como povoar os dias antes do café da manhã.

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