Perdendo o fôlego na Cinelândia
Perdendo o fôlego na Cinelândia
por Guilherme Fraenkel
São 12 horas e as calçadas estão repletas. Gente por todos os lados, postes de iluminação, latas de lixo, árvores, placas, e bancas de ambulantes reduzem ainda mais o pequeno espaço das calçadas estreitas. Tudo contribui para tornar a vida de Alex, 22 anos, estudante de comunicação social, morador do Recreio dos Bandeirantes, em um grande desafio. Tenta achar uma brecha por onde passar, mas parece que lhe falta espaço até mesmo para pensar. Seu professor deveria estar louco. Como seria possível encontrar uma matéria interessante para seu trabalho universitário em meio a tanta correria e tumulto?
– Avenida Rio Branco, Centro do Rio de Janeiro, coração nervoso da cidade de negócios, prova de que os cariocas não pensam apenas em praia e futebol. Passarela para centenas de pessoas com seus sonhos, desejos e esperanças – Disse-lhe o mestre buscando estimular o pupilo a realizar um grande trabalho de descoberta da vida.
– Histórias que passam muitas vezes desapercebidas pelos velozes transeuntes que vivem no limite do stress, da falta de tempo, da má alimentação, do mau humor e que acabam girando apenas em torno de si mesmos sem perceberem a riqueza da vida à sua volta.
Segue Alex em direção ao Largo da Carioca com sua câmera digital em punho tentando driblar as pessoas, conquistar seu espaço na calçada e achar uma história digna de ser contata.
Bruno, 19 anos, morador da Rocinha, agora desempregado, passaria facilmente por mais um transeunte na movimentada avenida carioca, não fosse seu porte arqueado, andar fatigado, feição desesperançada, olhos vermelhos, camiseta surrada e mochila nas costas. Acabara de sair sem esperanças de uma reunião com representantes de uma ONG no Passo Imperial.
– Sentimos muito meu Jovem. – Disseram-lhe os mecenas da modernidade. – Não há mais verbas para o projeto. Quase ninguém se interessa por música clássica. Se vocês fossem jogadores de futebol, quem sabe os patrocinadores os veriam com outros olhos?
Anos de dedicação ao aprendizado da música clássica, finais de semana em casa para economizar e comprar ingressos para salas de concerto. Bazares, festas beneficentes, rifas e churrascos promovidos pelo pai para conseguir pagar o caro instrumento, fruto do sonho de toda a infância e agora isso…
Só lhe restava pegar o ônibus para casa, guardar mais um sonho frustrado, reconstruir as expectativas, afiar os dedos e os pulmões para a próxima possibilidade. Parece que já podia ouvir seu Genivaldo, pai dedicado, dizendo “Ainda não foi desta vez garoto, mas não podemos perder a esperança. Nós fazemos a realidade à nossa volta. Toque alguma coisa para alegrar o coração…”
Alguns metros depois e os dois jovens se encontrariam da maneira mais inusitada possível. Bruno embarca em seu ônibus e na hora de passar a roleta percebe que seu vale transporte acabou. Seus últimos trocados haviam sido usados para comprar um salgado e um refresco no Largo do Boiadeiro e não teria como pagar a passagem. Vira-se para o motorista e pede uma carona.
Mas Jurandir, homem maduro de cabelos brancos e cara enfezada, escondido atrás do enorme volante, não estava em um bom dia. Acabara de ser informado que teria que pagar o concerto de seu veículo, danificado em acidente na primeira viagem. Ainda ruminava as palavras do fiscal da empresa que reduziu sua capacidade profissional julgando-o desatento e relapso. Dissera-lhe que passasse a dirigir com mais cautela e não teria mais que pagar danos de batidas.
-Na época que tinha sua idade eu não ficava bandeando longe de casa, não faltava aulas para passear pelos lugares bonitos da cidade e nem gastava meu dinheiro com besteiras – Responde o motorista em tom ríspido à quase súplica de Bruno.
– Eu estava tentando trabalho, não estou vadiando pela …
São as palavras que Bruno consegue pronunciar antes de ser empurrado para fora do ônibus e cair de costas em uma poça de água suja na calçada em frente à Biblioteca Nacional.
As pessoas olham a cena sem conseguir compreender direito o que acontecera.
O ônibus arranca logo em seguida deixando para trás o jovem estirado no chão. Algumas pessoas o ajudam o levantar-se, e ele, cabisbaixo, lembra-se mais uma vez de seu pai.
“Toque alguma coisa para alegrar o coração…”
Com os olhos nublados de desesperança e tristeza, lágrimas lavando-lhe a face abundantemente, saca de sua surrada mochila um estojo de camurça que parece intacto, mesmo após o acidente. Um leve sorriso brota-lhe na face.
Empunhando sua flauta doce, Bruno começa a encher o ambiente com suave melodia. Momentos de muita emoção para os que por ali passam.
– É mágica – Dizem uns.
– Quanto talento e generosidade – Dizem outros.
É possível sentir a emoção das pessoas, lágrimas e sorrisos brotam das faces antes esquecidas de si mesmas. Gente apressada esquece o relógio, ambulante para de vender, carros estacionam no meio fio para vivenciar a Interpretação vigorosa e melódica daquele jovem que acabara de escolher agir de forma diferente ante á agressão sofrida.
Seus dedos dedilham o instrumento com maestria, seus olhos fechados parecem levá-lo para algum lugar distante, para uma terra em que é possível viver de alegria e esperança. O sorriso brota-lhe a face a cada tomada de fôlego.
Os pintores e desenhistas que por ali passam seus dias oferecendo o fruto de suas habilidades com o carvão e tintas começam a gerar um instantâneo daquele momento procurando capturar os melhores ângulos.
Alex não consegue acreditar no que está acontecendo. Quem é aquele sonhador de feições marcantes que se atreve a quebrar a frenética rotina da sociedade carioca? Quanta ousadia, quanta coragem reunidos em uma só pessoa. Quanta força para fazer parar o mundo à sua volta. Quanta generosidade.
É uma apresentação digna dos grandes nomes da música clássica. Trinta minutos ininterruptos em que nem mesmo os apressados motoristas atrevem-se a interromper com suas insistentes buzinas.
A enorme praça da Cinelândia torna-se pequena para tantos gritos, palmas, sorrisos e encantamento que agradecem ao gigante Bruno que não se deixa abater.
Alex prepara-se para abordar o jovem músico quanto houve um afinado violino iniciando melodiosa canção nas escadas do Teatro Municipal. Músicos da Orquestra Sinfônica Brasileira ouviram o melodioso jovem desconhecido e decidem juntar-se para transformar a Cinelândia em uma enorme sala de concertos ao ar livre.
Poucos minutos são suficientes para juntar uma pequena orquestra informal. São Flautas, violinos, violoncelos, oboés e vários outros instrumentos portados por seus músicos que compõe a cena atípica oferecida aos cariocas no palco historicamente conhecido como berço de manifestações políticas e culturais da cidade. Mais uma vez a Cinelândia incendeia-se em manifestação cultural encantando a todos. Mais um dia ficará marcado na história do local.
A excitação é enorme e centenas de pessoas cercam o grupo para apreciar o concerto improvisado que pára o centro do Rio de Janeiro por quase uma hora.
Ao final, Bruno agradece generosamente a enorme platéia e aos músicos da OSB que haviam acabado de proporcionar-lhe uma das experiências mais incríveis de sua vida. Dedica a apresentação à memória de seu falecido pai e já se prepara para ir embora quando é convidado pelo maestro da OSB para conversar.
Alex, emocionado até a última de suas fibras, decide que seu trabalho estava concluído, mesmo que nunca viesse a saber o nome daquele jovem. Acena para um ônibus que segue em direção à Barra da Tijuca e retorna à sua rotina sabendo que nunca mais será o mesmo.
Seu professor tinha razão…